quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Pequenos caprichos

Conhecemo-nos quase por acaso e a nossa primeira conversa transportou-nos para uma esfera que nos fez esquecer os nossos destinos mais imediatos. Percorremos juntos os altos e os baixos, as curvas e as contra curvas, as esquinas e os becos que se cruzam nos habituais caminhos de quem acaba de conhecer outro alguém.
Ver-te não se tornou um acontecimento regular, não porque eu não quisesse, não porque tu não quisesses mas talvez porque ambos gostamos da liberdade que a vida nos dá de podermos continuar a confiar no acaso.
O acaso que nos trouxe alguns doces reencontros, tão raros como a possibilidade de nos tornarmos grandes amigos ou até amantes. Em todos eles trazias contigo um sorriso mágico, secreto de tão tímido que era e eu, eu levava todo o meu jeito atrapalhado de ter a oportunidade de acompanhar uma mulher como tu.
Em nós, apenas pairava uma melodia calma que nos embalava os nossos momentos. Os momentos em que éramos grandes amigos, os momentos em que éramos amantes, os momentos em que éramos confidentes, os momentos em que éramos loucos, mas também os momentos em que a realidade caía em nós e éramos apenas meros conhecidos, que por loucura mútua tinham resolvido brincar duas ou três vezes a todas as outras personagens, sem nem por um momento se importarem com qualquer norma ou regra da sociedade que teima em nos envolver.
E é agora, embriagado numa pequena revolução de músicas que me fazem recordar de ti, umas por terem servido de banda sonora  aos nossos pequenos momentos secretos, outras simplesmente porque proclamam todo o minúsculo universo que representas para mim, que te escrevo. Que escrevo a alguém por quem nunca me apaixonei, por quem nunca senti saudades, a alguém com quem me encontrei nas três ou quatro vezes que o universo o desejou, um desejo que por vezes demorou mais de um ano a repetir-se.
E é no fim desta pequena viagem que descubro uma envergonhada saudade, que talvez se desvaneça em apenas alguns minutos, talvez  perdure até ao próximo capricho do nosso universo.

domingo, 8 de junho de 2014

Era já tarde quando o telefone tocou, ao atender percebo que era a Clarice. Na sua habitual voz doce sussurra "estou cá em baixo, abre a porta".
Surpreso por tal visita aguardo impaciente à porta, tão impaciente que quando a deslumbro à minha frente, e antes mesmo de a convidar para entrar, não resisto em perguntar "o que fazes aqui a esta hora?".
- Vim conversar! - disse ela, como se tivesse adivinhado a solidão em que me encontrava.
Não era de todo habitual receber visitas da Clarice, nem sequer me lembrava da última vez que ela havia estado em minha casa. Na minha cabeça continuava a confusão habitual de não saber se precisava de companhia ou de estar sozinho, mas a surpresa de Clarice ajudava de certa forma a dissipar a dúvida.
Não conseguia perceber se queria de facto conversar, mas agradava-me a presença de Clarice e algo em mim desejava que naquela noite o tempo abrandasse a sua habitual correria.
- Mas estás bem? - perguntei, temendo que a agradável surpresa tivesse uma razão mais sombria que aquela que aparentava.
- Estou. Vim mesmo só conversar contigo, há tanto tempo que não falamos que resolvi aparecer. Sabes? Acho que me contagiaste com estas pequenas loucuras espontâneas e o melhor é que percebi o gozo de as cometer. Há mais ou menos um ano estava eu a chamar-te louco por apareceres na minha casa sem avisar, e agora estou eu aqui a fazer o mesmo. E sinto-me t...
- ...tão leve, tão viva, tão alegre - continuei eu também, adivinhando como habitual as sensações que lhe enchiam o espírito.
Sempre soubemos tão bem interpretar as sensações um do outro, e o sorriso que agora abríamos sincronizadamente bastava-nos para sabermos que tínhamos pela frente uma noite só nossa e com a cumplicidade que nunca conseguimos bem explicar.
Senti que faltava um transporte para nos levar e embalar na nossa longa viagem para aquela noite...
- É hoje que bebes comigo uma garrafa de vinho tinto? - perguntei eu, achando que seria a companhia ideal para nos desprendermos do mundo.
- Mas já é tarde... - respondeu, com o olhar de quem no fundo sabia que todo o ambiente gritava que o tempo tinha parado e que naquela noite não havia tarde nem cedo, só a noite...
- O melhor da noite é que mesmo quando é tarde continua a haver noite pela frente, e vais perceber que para além das pequenas loucuras há outras pequenas coisas que nos ajudam a encher a vida.
E sem esperar que ela respondesse, abri uma garrafa do melhor vinho que existia lá por casa. Enquanto servia dois copos ela interrompe a doce saudação do néctar a invadir os cálices.
- E tu, como estás?
Hesito, um pouco por respeito ao vinho que não quero interromper, um pouco porque não tenho a certeza de querer responder. No fundo, a dúvida inicial de saber se queria conversar ou não ainda não tinha desaparecido da minha cabeça... E agora estava ali, a servir dois copos de vinho, completamente desarmado pela pergunta de Clarice. Sabia que como sempre ela não me ia deixar fugir à pergunta, mas também sabia que ela, como ninguém, sabia o que era respeitar os silêncios, as pausas, o desfrutar do nada e do tudo...
- Deixa respirar um pouco e depois começa devagar - disse-lhe enquanto lhe entregava um dos copos.
Em seguida, e continuando o doce silêncio anterior, recostei-me no sofá. Um pouco de frente para ela, um pouco de frente para o nada ...
Ela olhava-me de vez em quando, quando desviava o olhar do copo. Esperava a minha resposta e não iria dizer outra palavra enquanto não lhe respondesse.
- Estou perdido, como sempre, estou perdido neste mundo e cada vez estranho mais as ruas por onde vagueio em busca de respostas. Já me restam poucas esperanças de um dia poder voltar a casa, duvido até que tenha sido de lá que alguma vez saí. Tudo me parece tão estranho, tudo tão medonho, tudo tão frio...
- Toda a gente tem uma casa, mesmo que não tenha sido de lá que partiste e que te perdeste, um dia vais encontrá-la e tenho a certeza que irás olhar para trás e ver que todo o caminho valeu a pena. Sei que tens um futuro lindo à tua frente, isso para mim é tão claro...
- Não sei... Eu não sei tanta coisa... Sinto-me cada vez mais desligado do mundo e acredito que o problema está em mim. Sinto que cada vez se torna mais difícil comunicar com os que me rodeiam, não sei se terei recuperação, não sei se encontrarei um sentido. Colecciono tantos episódios insólitos que poderia escrever uma comédia sobre as minhas relações. Não percebo... Não percebo as pessoas...
Já não era a primeira vez que falávamos deste assunto que não era assunto. Apesar de eu como sempre não me conseguir explicar, a Clarice percebia-me como ninguém e não se limitava a debitar clichés sobre como eu devia viver a minha vida. Ela sabia que a minha luta não era fácil, ela percebia que o que me faltava estava longe da compreensão da maioria das pessoas, ela sabia que por de trás de uma vida aparentemente fácil e cheia de sorte existia um lado sombrio, uma porta enorme que teimava em não se abrir. Ela sabia também que não havia muito que me pudesse dizer para me ajudar, mas continuava ali a ouvir-me, sem se sentir desconfortável por não ter o que dizer.
Não sei se ela sabia, mas só o seu olhar, os seus lábios, o seu rosto eram tanto para me acalmar... Estava apaixonado por Clarice, e isso ela sabia!
E não estava só apaixonado, amava-a como se ama alguém com quem se quer partilhar uma vida. Foi esse o meu erro, aliás, sempre o foi... O amor antes da paixão. Nunca percebi as pessoas que teimam em seguir a ordem inversa, acredito que a paixão é bem mais frágil que o amor e que é arriscado deixar a paixão nascer sem amor. Prefiro sair magoado a magoar e sei que deixando a paixão florescer cedo de mais será fácil deixar-me ir em palavras e promessas sem raízes. Mas o cansaço de todos os amores perdidos por paixões descontroladas faziam-me invejar todas essas pessoas que invertiam a ordem das coisas....
E ali estava Clarice, um caso diferente... A pessoa que me mostrou compreensão e respeito. A pessoa que apesar de tudo estava ali comigo naquela noite só para conversar. A pessoa responsável também por alguns dos episódios insólitos...
- Afinal gosto, gosto bastante, é tão diferente... - disse ela, quebrando o silêncio que pairava sobre nós há longos minutos, enquanto saboreava mais um pouco de vinho.
Sabia de tal modo que ela iria gostar, que até já me tinha esquecido que ela se estava a iniciar nesta coisa de provar o que era um bom vinho.
- Sabia que ias gostar, e que só dizias que não gostavas porque não sabias bem o que era...
Minutos depois já Clarice falava de novo de todas as suas aventuras reais e imaginadas, de todos os seus sonhos de criança grande, de todos os seus gostos, de todos os seus desgostos... Eu como sempre, ouvia atentamente, viajando com ela ao longo dos seus sonhos.
Faltavam poucas horas para o amanhecer quando dividimos o pouco de vinho que restava na garrafa. Alegres como sempre, olhámos pela janela e vislumbrámos as estrelas, a lua, lado a lado como verdadeiros amantes sem nunca o termos assumido.
E na primeira claridade deste novo dia Clarice deu-me um abraço longo e apertado, foi em direcção à porta segurando-me pelas mãos e com um "Vai dando notícias" saiu...